A condenação eterna de parentes e amigos não será causa de amargos desgostos para os bem-aventurados?

Diz-se que, no Céu, a alegria será perfeita, completa e sem qualquer mistura de inquietação.

Entretanto, a condenação eterna de parentes e amigos não será causa de amargos desgostos para os bem-aventurados? O coração poderá deixar de amar no Céu aqueles que tínhamos o dever de estimar sobre a Terra?

Sim, no Céu a alegria será perfeita, completa, sem qualquer mistura de inquietação ou tristeza: essa é a ordem querida por Deus.

A Escritura, com efeito, quase que em cada uma de suas páginas, nos mostra os santos repletos de alegria e gozos sem fim e sem medida.

Assim lemos nos Salmos: “Vós me ensinareis o caminho da vida, há abundância de alegria junto de Vós, e delícias eternas à vossa direita” (Sl 15,11). Ora, no local onde reina a alegria em sua plenitude não pode haver aflição nem dor. “Os santos serão saciados na abundância de vossa casa, e lhes dareis de beber das torrentes de vossas delícias” (Sl 35, 9). Eis outra afirmação da felicidade mais plena e superabundante.

E no Apocalipse: “Já não haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor, porque passou a primeira condição” (Ap 21, 4). Essas palavras indicam expressamente a ausência de qualquer pena ou dor de alma e de corpo, pois as penas e as dores são um triste apanágio desta vida de provação.

Por fim, Isaías também afirma: “O Senhor Deus enxugará as lágrimas de todas as faces” (Is 25, 8). E em outro trecho: “Os remidos chegarão a Sião com cânticos de triunfo, e uma alegria eterna coroará sua cabeça; a alegria e o gozo os possuirão; a tristeza e os gemidos serão para sempre banidos” (Is 35, 10).

Nada de mais certo, portanto, que a alegria no Céu será perfeita, sob qualquer ponto de vista. Se ali pudesse haver alguma tristeza, isto se deveria: ou ao fato de os bem-aventurados verem Deus muito ultrajado pelos maus; ou por eles próprios serem atingidos por alguma infelicidade; ou, ainda, por verem seus amigos condenados ao inferno. Ora, nenhuma dessas hipóteses pode realizar-se no Paraíso.

A alegria dos santos no Céu é imutável

Da parte de Deus, nenhum desgosto é possível sobrevir aos bem-aventurados, e isto por diversas razões.

Primeiramente, os pecados dos homens, por maiores e mais numerosos que se possa imaginá-los, de modo algum conseguirão ser prejudiciais a Deus. Se é fato que os crimes da Terra parecem obscurecer Sua glória extrínseca, é verdade também que daí Ele tira um grande bem: por um lado, deixando aos pecadores a “liberdade” de ofendê-Lo, Ele faz brilhar mais Sua paciência e Sua bondade; por outro, Sua justiça aparecerá em toda a sua perfeição quando chegar a hora do castigo, na outra vida. Donde se segue que, estando amplamente compensado o dano causado à glória divina pelo pecado, nenhum desgosto pode decorrer desse fato para os justos.

Em terceiro lugar, os justos não ignoram que nada acontece sem a permissão de Deus; que Ele poderia, com um simples sinal, se absolutamente o quisesse, impedir qualquer falta, fazer tudo entrar em ordem e salvar a humanidade inteira, mas que, por justos motivos, Ele resolveu não usar desse poder.

Uma outra razão se deduz dos atributos infinitos de Deus. Os santos O veem tão bom em Si mesmo, que a perdição eterna dos maus em nada lhes parece atingi-Lo, de tal forma é imensa a glória que Lhe advém de Suas inúmeras e incomensuráveis perfeições. É como se um monarca, dono do universo, perdesse numa catástrofe alguma cidadezinha de seu império: por essa perda – segundo o reconhecimento geral – não valeria a pena derramar uma lágrima sequer; mais ainda, ela seria motivo de alegria, caso tal cidadezinha tivesse merecido a fatalidade que a atingiu.

Por todas essas razões, os bem-aventurados não sentiriam tristeza alguma pelos pecados dos ímpios, nem pela sua condenação. Eles odeiam, é claro, o pecado; mas, por mais enérgico que seja neles esse sentimento, não sofrem por isso aborrecimento algum. Uma coisa é a tristeza ou a dor de alma, outra é a detestação e o ódio: estas podem existir sem aquelas.

É evidente que Deus, apesar do Seu ódio infinito ao mal, não experimenta, por esse motivo, qualquer desgosto.

Deus é imutável; a aflição, como qualquer outro mal, não O atinge, e quando se fala a Seu respeito, certas expressões como estar “aflito”, “pesaroso” ou “arrependido” têm apenas um sentido metafórico.

Ora, paralelamente, isso se aplica aos santos do Céu. Filhos de Deus, participam da condição de Deus e, como Ele, se bem que num grau inferior, são inacessíveis à aflição proveniente de qualquer mal que eles possam testemunhar.

Sua beatitude – supereminente e perfeitíssima participação da beatitude de Deus – é imutável como a dEle, incompatível com qualquer pena, pois a dor é um mal e uma imperfeição que repugna à infinita suavidade da condição beatífica.

O amor beatífico se fundamenta na caridade

Se os bem-aventurados estão isentos de todos os males, se vivem envoltos nos bens infinitos e eternos, claro está que eles não encontram em si motivo algum de aflição. Mas os seus próximos, os seus amigos cujo destino é a eterna condenação, não serão causa de amargos desgostos para eles?

De forma alguma. Pois o amor beatífico não se baseia no parentesco carnal, seu fundamento é a comunhão no espírito divino e na adoção divina. No Céu, a amizade ou o parentesco não têm senão um papel muito secundário. Pouco importa à pessoa, no estado beatífico, saber se deve a este ou àquele a vida corporal; pois se ela nasceu de tal pai e não de tal outro, isso ocorreu, não por uma disposição da vontade humana, mas por um decreto da Providência.

Ademais, a energia geradora não vem do homem, é um dom de Deus concedido livremente a ele. E frequentemente o homem busca menos o bem do filho que ele gera, do que o seu próprio prazer; entretanto, como instrumentos de Deus para formar os corpos, os pais têm o dever de cuidar de seu filho, e este a obrigação de obedecer aos pais e de socorrê-los nas necessidades da vida.

(Revista Arautos do Evangelho, Nov/2008, n. 83, p. 28-29)

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